No presente, sou aluna de enfermagem de 4º ano. E já vi tanto. Senti tanto.
Não consigo descrever a profunda tristeza que sinto ao ler comentários da opinião pública. Da falta de informação, de empatia, reconhecimento, valorização. Magoa, magoa muito.
Na minha curta experiência como quase-enfermeira já vi um pouco de tudo. Não sou forte, nem rija como deveria de ser, muitas vezes tenho vontade de chorar e muitas vezes vou para a casa de banho e choro até passar-me a dor na alma.
Tinha 19 anos quando ajudei o meu primeiro doente a morrer, quando agarrei-lhe na mão e ouvi-lhe o último suspiro, chorei no caminho para casa. Com a mesma idade, cuidei de uma pessoa já morta, fiquei tão impressionada que não sabia se tinha vontade de chorar ou vomitar, fiz os dois.
Com 21 anos vi pela primeira vez um recém-nascido entre a vida e a morte. Estava no bloco operatório e vi um bebé a nascer, um momento que deveria de ser algo bonito e especial não o foi, o bebé saíu negro como a noite devido à falta de oxigénio e vi-me confrontada em controlar as lágrimas quando estava rodeada de médicos e enfermeiros. Vi um bebé a lutar pela vida, fiquei tão perturbada que disse nunca mais. Esse nunca mais já lá vai algum tempo e continuo aqui, não sei porquê, se é porque estou destinada a fazer isto ou se não tenho coragem de desistir.
Por vezes dúvido da minha escolha, dúvido se fiz bem em optar por esta profissão, muitas vezes acho que fiz a escolha certa, outras tantas pergunto-me o quê que tinha na cabeça. Tento sempre dar o meu melhor, ser feliz no que faço, mostrar aos meus doentes que tenho gosto de estar ali com eles, mas depois vem tudo ao de cima, as faltas de condições, o desrespeito, sobrecarga, esgotamentos, falta de valorização. Estamos estagnados há uma década. Somos os únicos licenciados que recebem 1000€ quanto que todos os outros é 1400€ porquê? Somos menos que alguém? Não somos tão importantes? Por mais que tente, não chego a conclusão alguma.
Gastamos milhares de euros dos nossos bolsos em formações, mestrados, doutoramentos, com o fim de sermos capazes de prestar cuidados cada vez melhores aos nossos doentes e somos criticados por querermos um ordenado melhor. Porquê?
Irmã e cunhado enfermeiros, namorado enfermeiro, eu a uma curva de ser enfermeira e vejo as nossas vidas mal-paradas.
Porquê que não nos apoiam? Não nos compreendem? Porquê? Não queremos ser mais do que ninguém, não queremos receber mais do que os médicos, não queremos uma guerra. Queremos os nossos direitos que nos foram tirados, será que é pedir muito?
Damos tanto e recebemos tão pouco em troca.
Porquê?
Vou ser enfermeira, porquê? Com o decorrer desta semana, já não sei.
Há muito que por cá não ponho os pés, o meu 3º ano de universidade não foi propriamente fácil.
Os estágios em si, não foram difíceis a nível de conteúdo, mas foram sim díficeis para mim que não gostei de nenhum.
Comecemos por Obstetrícia. É tudo muito querido, lindo e limpinho. Quem é que não gosta de bebés e gosta de os pegar ao colo e dar-lhes o seu primeiro banho? Eu gostei, mas não me senti realizada de forma alguma, não senti que estava a aplicar conhecimentos realmente importantes, apesar de que a dita importância é algo muito relativo. Gostei de assistir a um parto natural, gostei ainda mais de assistir a uma cesariana de emergência. Mas ficamos por aqui, um sitio a não voltar, espero eu.
Pediatria, o meu pesadelo em serviço. A nível de técnicas é engraçado, faz-se um pouco de tudo, como se fosse umas medicinas em ponto pequeno, mas não gosto que os meus doentes sejam crianças, não tenho jeito, não tenho paciência e acho um tédio total. Acredito que quem adora crianças seja um serviço maravilhoso, mas não para mim. Principalmente quando vi uma criança numa paragem cardio-respiratória, é contra-natura, não consigo observar tal coisa. Mais uma vez, um serviço onde espero não voltar.
Passei um dia na UCINP, que são a unidade de cuidados intensivos neo-natais, é um bocado impressionante ver prematuros que cabem na palma da minha mão a lutar pela vida, mini-pessoas com 450gr., adorava saber o que é feito desses bebés, foi um lugar bom para passar um dia e perceber como funciona, mas onde não iria querer trabalhar.
O Centro de saúde direcionado para a saúde infantil. O medo, o terror, todos os dias queria fugir a sete pés. A enfermeira que estava responsável por mim não me deixava fazer absolutamente n-a-d-a, nunca me senti tão inútil, triste e com vontade de sair de lá. Nem gosto muito de falar sobre este estágio, foi a maior injustiça de sempre e a minha nota prefiro nem lembrar.
Posteriormente, o Centro de Saúde mais direcionado para a Saúde Mental, de que saúde mental nao tinha nada, mas incrivelmente gostei, tive a sorte de ficar num centro de saúde localizado no campo e tive a oportunidade de fazer um pouco de tudo, desde realizar consultas até a parte mais prática de colheita de sangue. Acaba por ser sempre vira o disco e toca o mesmo, mas foi um estágio relativamente bom.
Por fim, o último estágio numa Casa de Saúde, estava à espera do pior e foi o que correu melhor. Saúde Mental não é, definitivamente, a área que me identifique mais enquanto enfermeira, mas gostei muito da experiência, foi incrível perceber que sem saúde mental não há saúde física.
Apesar de ter sido um ano conturbado, foi mais um ano de universidade feito. Rumo ao 4º e último ano.
Eu tenho mais sorte que juízo e hoje tive a oportunidade de assistir a um parto "normal" e uma cesariana. Vamos começar do mais triste para o mais feliz e como tudo deveria ser.
Chegou à sala de partos uma senhora que veio da consulta externa por o CTG ter acusado que o bebé estava em bradicardia, ou seja, os batimentos cardíacos estavam a 70/80 quando deviam estar 140/150. A partir daí só vi médicos e enfermeiros a voar à frente dos meus olhos, eram CTG's, Ecografia... Até que o médico saí da sala e diz "Já chega, vamos tirar esse miúdo daí e é agora, já para o bloco operatório". Eu e mais dois internos fomos atrás de todos aqueles médicos e enfermeiros para o bloco, perdi a conta de quantas pessoas estavam naquela sala mas eram imensas e todas com caras fechadas e preocupadas. Entre a parte de cortar a barriga e tirarem o bebé foram no máximo uns 5 minutos e fiquei com o coração apertado. É tudo tão bruto, tão "puxa aqui/agarra aí/olha os ombros/agarra-lhe na cabeça e puxa" e vejo um bebé completamente roxo/azulado a sair de lá de dentro, um bebé que não chorava, até que começam a abana-lo, a esfrega-lo, a aspirarem secreções, que ele dá um pequeno choro, mas não um choro normal para um recém-nascido. Levaram-no para uma sala e eu fui atrás, vestiram-no e deixaram-no estável debaixo de uma fonte de calor. Eu olhei para ele e ele estava ali, sozinho, pequenino e frágil. Fiquei ao lado dele e dar-lhe mimos na esperança que ele soubesse que alguém estava ali, mesmo que não fosse a mãe dele. Acabou o turno e fui embora sem saber ao certo como ele ficará, fiquei com o coração tão pequenino que só ele e dei por mim a rezar que hoje não fosse o dia que tivesse de ver um bebé a morrer. Sinceramente não sei se ia aguentar.
Logo a seguir à cesariana, vi um parto normal e fiquei surpreendida por tudo ser tão rápido a partir do momento em que o bebé começa a sair. A única coisa que não gostei foi de ver a episiotomia (o corte que se faz na vagina para o bebé poder passar) e o tamanho que aquilo tem. Mas foi bonito, saiu um bebé gordinho e saudável.
Como todos pensavam, eu não me emocionei, não tive vontade de chorar de ser algo tão "bonito", na verdade fiquei sem vontade de ter filhos. Espero que um dia me esqueça disto e de como de 10 em 10 minutos alguém decide fazer o toque para ver como o bebé está.
Há momentos em que não gosto da profissão que escolhi, e ver um bebé entre a vida e a morte foi um deles.